Gols, confusões e
títulos: conheça Graeme Souness, capitão do Liverpool no período em que os Reds
assombraram a Europa com o seu futebol
Bill Nicholson deve ter achado engraçado ver aquele jovem de
19 anos entrando em seu escritório e exigindo um lugar no time principal do
Tottenham. Essa era a terceira vez que Graeme Souness tentava uma promoção. Com
cabelos desarrumados, talvez propositalmente, e uma pequena franja no lado
direito da testa, o escocês de Edinburgo tinha feições parecidas às do músico
Roger Waters, que naquele ano de 1972 lançou o álbum “Obscured by Clouds”,
trilha sonora do filme francês “La Vallée”, pela banda Pink Floyd.
Técnico dos Spurs entre 1958 e 1974, Nicholson estava no fim
da sua carreira no clube de Londres, mas não cedeu às exigências de Souness. A
insistência não funcionou. Decepcionado e irritado, o jovem abandonou a
Inglaterra e voltou a sua cidade natal. Participou de cerca de dez jogos pelo
Montreal Olympique, clube da Liga de Futebol Norte Americana, antes do
Tottenham perceber que deveria se livrar do garoto-problema. Vendeu-o
Middlesbrough por 30 mil libras.
Souness tinha um gosto especial pela vida noturna e poderia
ter colocado tudo a perder se não tivesse ouvido os conselhos do treinador Jack
Charlton quando chegou ao norte da Inglaterra. Campeão do mundo de 1966, o
ex-zagueiro deixou claro que Souness tinha duas opções: poderia se tornar um
jogador de muito sucesso ou encerrar sua carreira em um ano.
O escocês preferiu a primeira opção e ficou até 1978 no
Middlesbrough. Já com um protuberante bigode abaixo do nariz, entrou em campo
176 vezes e, com um potente chute de média-longa distância, anotou 22 gols. O
desempenho chamou a atenção do atual campeão europeu que procurava um
substituto para Ian Callaghan e já havia contratado dois escoceses.
No verão de 1977, o Liverpool trouxe o zagueiro Alan Hansen,
do clube escocês Partick Thistle, por 110 mil libras, e o atacante Kenny
Dalglish, do Celtic, por 440 mil libras. A transferência de Souness, em janeiro
de 1978, por 352 mil libras, foi na época, a maior entre clubes ingleses. Uma
semana antes, o Manchester United havia pago duas mil libras a menos para
contratar Joe Jordan do Leeds United.
“Champagne Charlie”
O Liverpool deu a Souness um quarto de hotel no Holiday Inn.
Aquela foi sua casa durante nove meses, e ele admite que, mais uma vez, quase
estragou a própria carreira. O dia começava com treinamentos em Melwood pela
manhã, seguidos por almoço e algumas cervejas no restaurante do hotel. Um breve cochilo de três horas entre às
quatro da tarde e às sete da noite servia de combustível para passar a noite em
algum clube noturno, que adorava a ideia de ter uma estrela do Liverpool
consumindo bebidas no seu bar ou frequentando a pista de dança. Foi nessa fase
da sua vida que ganhou o apelido de “Champagne Charlie”, nome de um musical
britânico de 1944.
Com o número 11 nas costas, Souness foi decisivo na decisão
da Copa dos Campeões de 1978 contra o Clube Brugge, da Bélgica. Dalglish fez
jogada pela direita da pequena área e alçou a bola na marca do pênalti. Um
zagueiro cortou de cabeça, e Souness precisou de três toques para dar o segundo
título europeu ao Liverpool. O primeiro serviu para dominar a bola no peito. O
segundo, com a parte de fora do pé direito, preparou o passe que pegou a defesa
belga desprevinida. Dalglish encobriu o goleiro com um toque sutil e marcou o
gol da vitória.
No Liverpool, Souness conquistou cinco títulos do Campeonato
Inglês, três da Copa dos Campeões e quatro Copas da Liga e, segundo um perfil
de 1993 do conceituado jornal inglês The
Independent, tornou-se “um dos melhores meias da Europa. Arrogante,
elegante, econômico, seu passe, chute e leitura do jogo eram incomparáveis”.
Seu chute era uma arma letal e proporcionou 38 gols com a
camisa do Liverpool. O primeiro, contra o Manchester United, em 1978, foi
eleito pela emissora de televisão BBC
como o mais bonito da temporada. Contra o CSKA Sofia, da Bulgária, em 1981,
marcou três vezes e ganhou elogios do ex-jogador Ian St John, outro ídolo da
torcida vermelha. “Se Graeme jogar até os 100 anos, nunca mais vai acertar três
chutes tão perfeitos”, disse. A verdade é que apenas dois foram
impressionantes, ambos de primeira e da entrada da área. Ele estava na marca do
pênalti quando marcou seu primeiro gol naquela goleada por 5 a 1 e seu arremate
foi protocolar, na saída do goleiro.
Souness também deixou sua marca na conquista da Copa da Liga
Inglesa de 1984, contra o Everton, a primeira decidida pelos clubes de
Merseyside. Após um 0 a 0 em Wembley, os clubes jogaram um replay no Maine Road, de Manchester. Aos 21 minutos, o meia dominou
com a perna direita e girou. Antes de a bola cair no chão, bateu com a canhota
e acertou no canto.
Capitão
O menino que fugiu do Tottenham transformou-se em capitão de
um dos maiores clubes ingleses no Natal de 1981. O Liverpool havia perdido do
Manchester City por 3 a 1, e o técnico Bob Paisley decidiu que mudanças eram
necessárias. Aproximou-se do então capitão Phil Thompson e perguntou se talvez
a responsabilidade que vinha junto com a braçadeira não estava sendo um pouco
demais para ele. Seguiu-se uma discussão que não foi suficiente para o maior
treinador da história do Liverpool mudar de ideia.
“Alguns dias depois, eu estava perto de uma das traves,
ajudando a recolher as bolas em um treino de finalizações quando ele me
perguntou o que eu achava de ser capitão. Eu sabia que queria aquilo e disse
que, se ele me oferecesse, eu aceitaria. Na próxima partida, contra o Swansea,
eu era capitão. Foi uma emoção muito legal e uma honra, mesmo tendo encerrado
qualquer chance de amizade com Phil Thompson. Ele tomou aquilo como uma afronta
pessoal e demorou muito, muito tempo para sequer me cumprimentar”, contou
Souness.
A derrota para o City havia deixado o Liverpool em 12 lugar
no Campeonato Inglês. Com Souness capitão, o time venceu o Swansea por 4 a 0 e
embalou uma sequência de 20 vitórias e três empates nas últimas 25 partidas do
torneio. Foi suficiente para conquistar o 13 título inglês do clube, que foi
campeão nacional em todas as temporadas em que Souness capitaneou os seus
companheiros.
“O jogador mais sujo
da sua geração”
O armador também sabia marcar, e às vezes exagerava. Para o
ex-atacante da seleção inglesa Frank Worthington, ele foi o “jogador mais sujo
da sua geração”. Na segunda partida da semifinal da Copa dos Campeões de 1984,
ele foi verbal e fisicamente agredido por jogadores do Dínamo Bucareste, talvez
porque tenha quebrado o maxilar de um rival no jogo de ida, em Anfield.
A decisão europeia daquela temporada contra a Roma, no
Estádio Olímpico, marcou a despedida de Souness do Liverpool. Ele foi vendido a
Sampdoria por 650 mil libras em junho de 1984. Lembra que houve um verdadeiro
carnaval quando chegou a Itália, com direito a flores para sua mulher, beijos e
abraços, e uma camisa com o número 11 no aeroporto. Foi campeão da Copa da
Itália e teve dois anos de sucesso no futebol italiano.
Era a hora de voltar para casa. Souness aceitou um emprego
como jogador-treinador do Glasgow Rangers. Embora tenha entrado em campo 50
vezes, dedicou-se mais ao papel de administrador. Conseguiu convencer o novo
presidente David Murray a abrir a carteira e gastou o dinheiro do chefe sem
muito critério. ”Uma criança em uma loja de doces”, segundo o Independent.
Conquistou três edições do
Campeonato Escocês, mas talvez sua maior marca no futebol do país tenha sido
enfrentar os preconceitos dos protestantes e contratar jogadores ingleses,
negros, judeus e católicos. Souness nunca caiu nas graças da torcida. “Ele era
muito extravagante, muito arrogante e morava em Edinburgo”, escreveu o Independent.
Bruno Bonsanti tem 22 anos, é formado em jornalismo e nas horas vagas (vagas mesmo) escreve no Blog do Bonsanti.
"Futebol é a alegria pela alegria, a tristeza pela tristeza. Futebol é feito por personagens e histórias incríveis. Futebol é um jogo em que 22 homens correm atrás de uma bola e, no fim, o Palmeiras perde."
No twitter, @brunobonsanti.
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